quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Samos - Mercadoiro (30km)

Pela primeira desde que começamos o caminho demos início à etapa sob condições climatéricas menos favoráveis. Saímos de Samos com frio, nevoeiro e uma chuva miudinha que nos obrigou a vestir uma camisola mais quente e um impermeável. Os 13km até Sarria foram um verdadeiro suplício. Uma indisposição intestinal, que me obrigou a parar por várias vezes, tornou ainda mais difícil um trilho cheio de altos e baixos, pedras soltas e que nunca mais acabava.


O destino final parecia mesmo ser Sarria pois não me sentia em condições para continuar a andar. Após três horas de penosa caminhada paramos num pequeno povoado, a cerca de 4km da vila, para tomar o pequeno-almoço, algo que deveríamos ter feito logo à saída de Samos. Todas as jornadas devem começar com uma boa alimentação mas, neste dia, acabamos por nos descuidar e o resultado foi um estado de extrema fraqueza e cansaço.


Um galão quente e uma torrada fizeram maravilhas e rapidamente me senti a recompor um pouco. Ainda assim, chegar a Sarria foi um desafio dificilmente superado. A povoação, uma das maiores que encontramos no território galego, não prima pela beleza e o tempo encoberto e chuvoso, não contribuiu para melhorar o aspecto da localidade. Calcorreamos as ruas e, com alguma dificuldade, subimos uma íngreme escadaria que nos levou até à igreja de Santa Marinha.


Aí paramos cerca de 45m para descansar, repor forças e carimbar a credencial. Junto ao templo encontramos duas peregrinas japonesas com quem, posteriormente, nos cruzamos em diversas ocasiões. Depois destes momentos de repouso resolvemos arriscar e seguir em frente, sem lugar de destino traçado. Felizmente, na Galiza, a distância entre albergues é reduzida e por isso a nossa perspectiva era avançar mais alguns quilómetros até o corpo aguentar.

À saída de Sarria voltamos a parar, desta feita, para visitar o Convento da Madalena, um monumento que alia várias correntes artísticas e que se constitui como uma das jóias arquitectónicas do Caminho Francês. Passamos vários minutos a admirar os claustros e a rezar no interior da igreja conventual. Por incrível que possa parecer, depois do tormento que foi o percurso até Sarria, a seguir a esta paragem, percorremos um dos melhores trilhos de todo o Caminho.


Poucos quilómetros à frente do Convento da Madalena atravessamos a linha férrea, cruzamos uma bela ponte medieval e entramos, novamente acompanhados pelo casal hispano-venezuelano, num denso bosque de carvalhos, faias e castanheiros, sulcado por inúmeros riachos e ribeiras. As nuvens dissiparam-se, apareceram os primeiros raios de sol do dia e corria uma brisa suave. A caminhada tornou-se extremamente agradável e os quilómetros fizeram-se com grande facilidade.


Saídos da floresta percorremos o trilho entre campos de cultivo semeados de milho e prados verdejantes onde pastavam vacas, cabras e ovelhas. As aldeias, com as suas capelas e igrejas (a maioria de estilo românico), sucediam-se umas às outras. As casas típicas, com varandas enfeitadas de flores, as fontes e os tanques de água fresca, os espigueiros e os cruzeiros que bordejam a via jacobeia dão um encanto especial a esta Galiza rural e interior.



Por volta das duas horas da tarde despedimo-nos dos companheiros de viagem, que pernoitaram em Morgade, e avançamos até Mirallos onde paramos para almoçar. Aí encontramos o Alexandre. Depois de nos cruzarmos durante vários dias seguidos e termos trocado apenas palavras de ocasião, pela primeira vez, sentamo-nos à mesma mesa a fazer uma refeição mais demorada e entabulamos conversa. Disse-nos que vinha da zona de Florianápolis e que iria estar pouco mais de um mês na Europa. Após chegar a Santiago, tencionava conhecer Braga, Porto, Fátima e Lisboa. Era uma curiosa personagem: um militar peregrino, devoto de Nossa Senhora Aparecida e que caminhava quase sempre com um terço na mão.


Depois da almoçarada e como já estava a ficar tarde, decidimos não terminar o dia em Portomarín que, segundo os guias do peregrino, seria o ponto de chegada para a etapa. Tinham-nos também informado que o albergue dessa localidade já estava bastante congestionado de caminhantes e que não seria fácil encontrar local para pernoitar. Por isso mesmo, fizemos apenas mais 4km até ao albergue do Mercadoiro. Aí despedimo-nos do Alexandre que, em solitário, seguiu até à vila situada nas margens do rio Minho.


O albergue do Mercadoiro foi uma muito agradável surpresa. Instalado numa casa típica, à beira de um trilho de lajes ladeado por frondosas árvores, todo ele exala rusticidade. Muito limpo, bem cuidado e com excelentes condições de alojamento, resulta de um projecto de dois jovens valencianos que resolveram instalar-se nos confins da Galiza. O jardim com espreguiçadeira, camas de rede e um enorme relvado é ideal para descansar após uma longas etapa.


Partilhamos um quarto de oito beliches com outros peregrinos portugueses, dois irmãos de Braga, que também já eram veteranos das caminhadas até Santiago. Grande luxo foi o facto de podermos lavar a roupa à máquina. Enfiamos lá para dentro tudo o que podíamos pois não sabíamos se haveria outra oportunidade de o fazer novamente antes de chegar a Santiago. Roupa que durante os dias anteriores foi lavada com sabão azul em lavatórios e chuveiros e seca nos atilhos da mochila teve, pela primeira vez desde o início do Caminho, um tratamento mais digno, com direito a detergente, amaciador e um enorme estendal.

Rente à noite, fomos ao pequeno restaurante do albergue onde nos foi servido um saboroso chuletón. Parece que em vez de uma peregrinação religiosa estávamos a fazer um roteiro gastronómico, mas o que havemos de fazer? Há que aproveitar a boa comida e devo confessar que, no geral, comemos muito bem, algo que não estava minimamente à espera.

Depois da ceia, aproveitamos a noite amena e espectacular para ficar mais um pouco no relvado do jardim a admirar o céu estrelado de Agosto. Seria imperdoável não o fazer tendo em consideração a própria Via Láctea tem a designação de Caminho de Santiago. Foi o epílogo perfeito para uma jornada que, pela manhã, se revelou um verdadeiro tormento. Durante as primeiras horas de caminhada pensamos que nem os 13km até Sarria conseguiríamos fazer. No final do dia acabamos por contabilizar mais 30km nas pernas e desfrutamos de um dos troços mais aprazíveis do Caminho. 


domingo, 5 de janeiro de 2014

O Cebreiro - Samos (30km)

Depois de uma noite bem dormida, tomámos o pequeno-almoço e saímos, ainda de noite, do pequeno povoado. Percorremos as estreitas ruas da aldeia, sem vestígios de outros peregrinos, e demos início à descida até Hospital da Condesa. O percurso, pelo meio dos montes, foi acompanhado por uma brisa suave e pelo despontar dos primeiros raios de sol que proporcionaram um amanhecer absolutamente magnífico.



Por esta altura ainda não tínhamos o itinerário da etapa completamente delineado. Seguindo as etapas definidas pelos guias do peregrino terminaríamos o dia em Triacastela, mas era nossa intenção, caso conseguíssemos, fazer um desvio e passar a noite no Mosteiro de Samos. Com este pensamento em mente continuamos a caminhada passando por várias aldeias, pontuadas por pequenas capelas e de onde emanava um cheiro a ruralidade.

Depois de alguns quilómetros enfrentamos duas íngremes, mas relativamente curtas, subidas: o Alto de S. Roque e o Alto do Poio. No cimo da primeira, um grupo de peregrinos em bicicleta dormia junto ao aconchego da estátua do santo que, na Idade Média, foi peregrino até Compostela. Entre as duas subidas passamos pelo Hospital da Condesa, onde se começaram a avistar muitos peregrinos. Aí encontramos uma senhora idosa que, à porta da sua casa, distribuía saborosos crepes pelos caminhantes.



Mais à frente estava o Alto do Poio. Esta encosta de cabo de nós e chegamos lá acima completamente esbaforidos. Abancamos numa tienda, estrategicamente colocada no fim da escalada, para tomar uma bebida fresca, acompanhados pelo brasileiro Alexandre e pela mexicana Liliana. Depois do habitual descanso de 30m prosseguimos a jornada, a partir daqui, sempre a descer até Triacastela.

O caminho até esta localidade foi feito na companhia de um simpático casal galego, o Pepe e a Isabel que, tal como nós, também não sabia onde concluir a etapa. A aproximação a Triacastela fez-se facilmente pelo meio de bosques quase druídicos. Chegados à vila paramos junto ao albergue municipal para comer e decidir o rumo a tomar. Após o almoço e apesar do calor abrasador que se fazia sentir decidimos avançar até Samos. Perto da igreja de Santiago despedimo-nos do Pepe e da Isabel, que foram por San Xil, e seguimos até ao mosteiro.

Pelo caminho, paralelo à estrada nacional até San Cristovo do Real, voltamos a encontrar caras conhecidas, nomeadamente o italiano irritado do Cebreiro. Novamente sentimos a falta de água. Devido ao calor, a reserva do cantil esgotava-se com uma rapidez impressionante e fomos obrigados a “assaltar” a torneira de uma habitação situada à beira do trilho.

A aldeia de San Cristovo do Real foi uma bela surpresa. Casinhas de pedra com portadas e varandas de madeira, um riacho, uma pontezinha adorável e uma pequena cascata à beira da qual pastavam alguns animais. O cenário bucólico era o ideal para mais uma paragem. Tiramos as mochilas das costas, descalçamos as botas e enfiamo-nos nas águas geladas da ribeira. Que bem soube aquela banhoca! Foi especialmente terapêutica para as pernas e pés, doridos, cansados e inchados pelos quilómetros e pelo calor. A vontade de sair daquele povoado era nula, mas o dia estava a aproximar-se do fim e ainda faltava chegar a Samos.




Percorremos, pelo meio de denso arvoredo, mais 4km até ao destino final. Chegar a Samos é qualquer coisa de impressionante. O mosteiro é enorme, encravado num vale irrigado por um pequeno rio. A fachada imponente da igreja fez-nos lembrar a do mosteiro de Salzedas, perto de Tarouca.

Dirigimo-nos apressadamente à receção do mosteiro beneditino e fomos recebidos por um monge idoso, com um sentido de humor muito apurado, que nos pregou um valente susto. Quando perguntamos se ainda tinha lugar, respondeu-nos com um ar muito sério, que àquela hora era impossível arranjar estadia para nós. Ficamos em estado de choque. A povoação é pequena, sem grandes alojamentos, estava a escurecer e o próximo albergue ficava em Sarria, a 13km dali. De repente, com uma sonora gargalhada, depois de saber que éramos portugueses e de nos fazer mil e uma questões, disse-nos que ainda havia beliches.



O albergue do mosteiro situa-se numa dependência que anteriormente servia de armazém. O espaço amplo, decorado com motivos relacionados com a prática agrícola, estava cheio de gente e os lugares disponíveis já eram poucos. Voltamos a encontrar o Alexandre que, munido de várias agulhas, furava as bolhas dos pés. Depois do banho tomado fomos visitar o edifício acompanhados por um dos monges.


Percorremos os espaços dos claustros, da botica e a parte do dormitório destinada a acolher aqueles que procuram uns dias de paz, descanso e contemplação. Por fim, visitamos a igreja monacal e a sacristia. No mosteiro, fundado cerca do século VI, por iniciativa de S. Martinho de Dume, vivem pouco mais de vinte monges beneditinos, em regime de clausura e semi-clausura (como é o caso do monge que nos fez a visita guiada).


Às 19h dirigimo-nos à igreja, que estava cheia de peregrinos e turistas, com objetivo de ouvir as vésperas. Nunca tinha presenciado, “ao vivo e a cores”, uma celebração em canto gregoriano. Foi uma sensação incrível ouvir aqueles monges, totalmente vestidos de negro, a recitar, em uníssono, cânticos religiosos. Mais tarde fomos jantar a um agradável tasco, mesmo junto ao mosteiro. Sorvemos mais uma malga de caldo galego, que a caminhada exige repasto reforçado, acompanhado por um lombo assado e legumes cozidos. Como sobremesa, tarte de queijo. Tudo estava delicioso. Às 10h, como nos tinha sido indicado, fecharam-se as portas do mosteiro. Em poucos minutos instalou-se o silêncio e adormeci na paz dos anjos. 

domingo, 29 de dezembro de 2013

Vilafranca del Bierzo - O Cebreiro (30km)

Depois de uma noite mal dormida demos início à “etapa rainha” do Caminho Francês. Íamos chegar ao Cebreiro, ponto mítico da rota jacobeia e porta de entrada na Galiza. Os primeiros quilómetros, percorridos às escuras, pela fresca e por um trilho paralelo à estrada nacional fizeram-se sem problemas. No entanto, a meio da etapa, a primeira e única bolha da peregrinação teve de ser picada e desinfectada.


A paisagem foi-se tornando menos seca e agreste, começaram a surgir os bosques de faias e carvalhos e inúmeros riachos e fontes que permitiram amenizar a sede e o calor. Começaram também a aparecer os primeiros cruzeiros e espigueiros: a Galiza aproximava-se. Fomos parando para ingerir o já habitual Aquarius e carimbar a credencial. Sucederam-se as aldeias e, finalmente, chegamos a Las Herrerias, ponto de partida para a temível subida ao Cebreiro. Situada num vale fértil, irrigado por um riacho, a povoação tem um ar rústico e pitoresco. Aí, durante a Idade Média, ficavam situadas as forjas que produziam as ferraduras para os animais que levavam os peregrinos até ao cimo do monte.


Saindo do povoado teve início a subida, primeiro por uma estrada de asfalto que mais parecia uma parede, depois pelo meio de um frondoso bosque que nos levou até la Faba. Estávamos exaustos, valeu-nos uma fonte de água fresca onde tomamos um belo “banho” e o carregamento de gomas que tínhamos adquirido, no dia anterior, num supermercado em Vilafranca. Recomeçamos a subida até Laguna de Castilla acompanhados pelo casal hispano-venezuelano. Pelo caminho encontramos um peregrino francês que, de burro, tinha partido da região de Paris e que, depois de chegar a Santiago, fazia, agora, o caminho de regresso a casa num sentido oposto ao nosso.



Paramos novamente em Laguna de Castilla para comer alguma coisa e descansar. A água fresca fonte da aldeia serviu de geleira improvisada e para retemperar as forças às pernas. A quase 1300m, o calor era terrível e os últimos três quilómetros foram feitos debaixo de um sol abrasador, por um caminho sem sombra que serpenteava pela encosta acima.

Depois das tribulações da subida chegamos completamente exauridos ao Cebreiro. Encavalitada no cimo do monte, a aldeia encanta pelo pitoresco da ermida de Santa Maria a Real e das suas casas típicas cobertas de colmo. A vista desde o miradouro é espectacular e abarca o horizonte quase até Ponferrada.


O pueblo estava apinhado de gente. O burburinho era enorme, ouviam-se várias línguas e cruzavam-se centenas de caminhantes com mochilas às costas, vieiras, bastões e cabaças com os turistas ocasionais. Deparamo-nos com um peregrino italiano, com o qual mais tarde travamos conhecimento, que, muito exaltado, discutia ao telemóvel com alguém que lhe havia recomendado fazer o Caminho de Santiago. Exclamava constantemente “Ce una violenza!”. Estava revoltado por não o terem avisado da dureza da subida para o Cebreiro e afirmava que caso soubesse quão difícil era o Caminho nunca o teria começado. Mais tarde, quando nos despedimos dele em Santiago, já estava a preparar a próxima peregrinação que seria, provavelmente, o caminho do Norte. São os mistérios do caminho de Santiago! Assim que se começa… eu que o diga.


Assim que chegamos decidimos que, depois do esforço dos últimos dias, merecíamos um tratamento VIP e que não olharíamos a despesas. Dirigimo-nos a um hotel junto à capela e instalamo-nos ali. Céus, uma cama normal, com um colchão fantástico e uma casa de banho com banheira. Ecologia à parte, foi um dos melhores e mais demorados banhos de imersão dos últimos tempos. Quase foi necessária uma rebarbadora para desentranhar a poeira acumulada nos últimos dias e que os rápidos duches dos albergues não dão para limpar.


Frescos e limpinhos fomos ao santuário carimbar a credencial, assistir à missa e receber outra bênção do peregrino. Não seria por falta dela que o resto do caminho iria correr mal. Fomos a todas! Para terminar o dia em beleza jantamos, no restaurante do hotel, um belo caldo galego e uns grelhados, acompanhados por um creme orujo ou não estivéssemos já em terras galegas. Depois de tão faustoso repasto, a noite de sono só poderia ser reparadora.



Lenda do Milagre do Cebreiro: Conta a lenda que, nos fins do século XIII, um devoto camponês de Barxamaior, homem de profunda crença religiosa, decidiu dirigir-se à missa na capela da sua paróquia, o Cebreiro, apesar do mau tempo que se fazia sentir. Quando chegou à igreja, o frade que celebrava a missa pensou que o velho camponês era louco por sair de casa no meio de tamanha tempestade só para comungar o pão e o vinho e que estaria bem melhor, na sua casa, à beira da lareira. Nesse mesmo momento, quando estava a fazer a consagração da hóstia e do vinho reparou que se tinham transformado em carne e em sangue. A imagem da Virgem, que estava na lateral do altar, inclinou a cabeça e ainda hoje está nessa posição. As notícias do milagre espalharam-se rapidamente e assim nasceu uma enorme devoção ao Milagre do Cebreiro. O cálice e a patena ficaram guardados como relíquias na ermida até que os Reis Católicos as quiseram levar para Valladolid, no ano de 1486. No entanto, os cavalos que as transportavam detiveram-se a poucos quilómetros da povoação e não mais avançaram. O medo apavorou-se da comitiva real e decidiu-se soltar os animais que logo regressaram ao local de origem dos objectos. 


sábado, 28 de dezembro de 2013

Ponferrada - Vilafranca del Bierzo (24km)

A etapa de hoje prometia ser suave. Pouco mais de 20km, quase planos e sem grandes desníveis. A única dificuldade continuava a ser o calor. Mais uma vez saímos por volta das 6.30 para aproveitar a frescura da manhã. Passamos pelo fantástico castelo templário de Ponferrada que não conseguimos ver no dia anterior por estarmos demasiado fatigados e esfomeados para andar a circular pela cidade. Sair da urbe demorou algum tempo pois havia que circundar a povoação e, pela primeira vez, tivemos dúvidas no caminho a seguir já que, por momentos, desapareceram as setas amarelas que guiam os peregrinos.

Depois de encontrar a direcção certa, os quilómetros foram-se fazendo a um bom ritmo, com algumas paragens para abastecer o cantil. Ao longe começavam a avistar-se os montes que indicam a aproximação à Galiza. Perto de Cacabelos, numa das “estações de serviço”, encontramos dois portugueses, peregrinos em bicicleta, que tinham iniciado o caminho em Saint Jean. Aí retemperamos as forças e cuidamos dos pés. Mais à frente travamos conhecimento com outra portuguesa que fazia o caminho acompanhada por dois amigos espanhóis e dois cães.



Pelo meio dos vinhedos continuamos o percurso em direcção a Vilafranca del Bierzo, cruzando pequenos pueblos com rústicas habitações de telhados de ardósia, portadas de madeira e varandas floridas. As caras que encontrávamos nas tiendas e nos pontos de descanso foram-se tornando cada vez mais familiares: novamente o Alexandre, o peregrino brasileiro, a Liliana, a mexicana que veio à Europa fazer um MBA, um casal hispano-venezuleno, o casal italiano que nos cedeu os colchões…enfim, aqueles com quem, dias mais tarde, chegamos a Compostela.


Mais uma vez, os últimos quilómetros foram revestidos de algumas dificuldades devido ao calor e à falta de água, mas lá conseguimos chegar a Vilafranca e instalar-nos no albergue. Pela primeira vez coube-me em sorte uma cama na parte de cima do beliche. Devido ao meu historial não era um augúrio promissor para uma boa noite de sono. Depois de instalados e do duche tomado fomos conhecer a vila. Passamos pela igreja de S. Tiago e pela sua “Porta do Perdão” junto da qual, quem estivesse doente ou impossibilitado de prosseguir viagem até Compostela, podia obter o perdão dos seus pecados com a mesma validade que diante do túmulo do Apóstolo.



A povoação pareceu-nos muito aprazível, com um belo conjunto monumental e uma Plaza Mayor bastante simpática. Aí bebemos um granizado e comemos umas tapas. O jantar, num restaurante da mesma praça, estava delicioso. Assim, quem não quer ser peregrino? De volta ao albergue o cenário não foi tão animador. Um coro de roncos ecoava pelo espaço do 2º piso onde tínhamos ficado instalados. O ruído era tão ensurdecedor que nem os “tapa ouvidos” foram suficientes. Além disso, o receio de voltar a cair do primeiro andar de um beliche impediu-me de ter um sono descansado. Dei voltas e voltas sobre o colchão. A noite foi muito mal dormida e a recuperação para a etapa seguinte não se chegou a fazer. Nem todas as noites de um peregrino são abençoadas com um sono angelical. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Foncebadón - Ponferrada (27km)

A segunda etapa prometia ser muito intensa. Ia passar por um dos pontos míticos do Caminho, a Cruz de Ferro, a poucos quilómetros de Foncebadón. No albergue paroquial, tal como sucedeu no dia anterior, a refeição matinal foi tomada em conjunto. Depois do pequeno-almoço, às seis da manhã, agarramos na mochila e no cajado e fizemo-nos à estrada. Iniciamos a subida, que nos ia levar a exactos 1500m, com os primeiros raios de sol. O céu estava absolutamente incrível, matizado de um laranja forte e, ao longe, viam-se as luzes da cidade de Astorga.


A Cruz de Ferro, sem ser particularmente bonita, é realmente marcante. O longo mastro de madeira, encravado num monte de pedras, está pejado de pequenos “recuerdos” e mensagens de peregrinos. Fitas, cruzes, meias, bonés, correntes de bicicleta, capacetes, terços, bandeiras…cada peregrino deixa aqui um pouco de si. Recordo particularmente a mensagem de um tal Rodrigo que, numa pequena pedra, escreveu as seguintes linhas: “Que Deus me acompanhe por toda a vida”. Tal como outros peregrinos, também deixei a minha pedra e pedi a Deus pelos que me são mais queridos. Aí conhecemos um peregrino brasileiro que, a partir desse dia, se tornou presença assídua no nosso percurso e que, por vezes, caminhou connosco. Foi a primeira vez que ouvimos alguém a falar a língua de Camões no Caminho Francês.


Da Cruz de Ferro iniciamos a descida de vários quilómetros que nos iria levar até Ponferrada. A parte da manhã fez-se a bom ritmo. Estava fresco e o trilho não era particularmente difícil, apesar de ser desarborizado. Ao passar por Manjarin encontramos um pequeno tasco apinhado de bandeiras de vários países e de tabuletas com a indicação das distâncias para diversos locais do mundo. Para nosso espanto, lá estava a indicação de 299km para a Trofa e 290km para Famalicão. Por todo o lado os portugueses deixam a sua marca!

A descida tornou-se cada vez mais pronunciada à medida que nos aproximávamos de El Acebo, uma aldeia bem catita, de onde já se avistava Ponferrada. Quem iria imaginar que estava ainda tão longe e que custaria tanto a lá chegar. Em El Acebo abancamos numa tienda para fazer o reabastecimento. Estava esganada de fome e rapidamente devorei a divinal empanada caseira, acabada de fazer, acompanhada pelo inevitável Aquarius. Escusado será dizer que, em todos os locais onde parávamos, corríamos apressadamente para a banca do carimbo. A credencial estava a ficar composta ao segundo dia de peregrinação.



Após recuperar energias percorremos as estreitas, mas muito bem arranjadas, ruas da aldeia e continuamos a descida. O calor começava a apertar e os pés a dar sinais de cansaço pois, por esta altura, o trilho era muito pedregoso e tinha um desnível enorme. Chegar a Molinaseca foi uma bênção. Sentamo-nos nas margens do rio Muruelo, junto à ponte, refrescamos o corpo nas suas águas límpidas e saboreamos a calma do local. Faltavam apenas cerca de 8km para Ponferrada, mas esses foram um verdadeiro suplício. Antes de sair de Molinaseca paramos numa farmácia para comprar protector solar factor 50 e pensos para as bolhas que ameaçavam aparecer.



O calor era insuportável, a água pouca e parecia que não avançávamos. Estes oito quilómetros pareceram mais longos que os restantes vinte da etapa. Continuamos a contornar a cidade e a parar de 500 em 500m para descansar e beber umas míseras gotinhas de água. Quase de rastos chegamos, por fim, ao Albergue San Nicolás de Flue. Depois de uma longa espera na fila para conseguir um beliche, podemos tomar banho e jantar.

O estado lastimável dos nossos pés não nos permitiu calcorrear a povoação. Entramos no primeiro pub que encontramos para comer um hambúrguer com batatas bravas e ver o jogo do Real Madrid. Depois da janta regressamos ao albergue onde assistimos a uma concorrida missa e recebemos a bênção do peregrino. Por volta das dez da noite deitei-me no beliche e, mais uma vez, dei uso aos benditos tampões de ouvidos. Mais uma santa noite de sono. A meta estava, agora, a pouco mais de 200km. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Astorga - Foncebadón (26km)

Após umas boas horas de sono e um revigorante duche estava pronta para começar a primeira etapa do Caminho Francês: cerca de 26 km entre Astorga e a aldeia serrana de Foncebadón. A etapa começou junto à catedral e ao palácio episcopal a uma hora já relativamente adiantada da manhã (10h). Habitualmente começamos as etapas por volta das 6.30 de modo a aproveitar o fresco mas, desta vez, preferimos descasar um pouco mais.

A catedral da cidade é realmente impressionante, como sucede com quase todas as catedrais espanholas. Os relevos do portal e a imponente fachada, ladeada por duas enormes torres, dão um ar grandioso ao edifício. Ao lado, uma das obras-primas de Gaudi, o palácio episcopal que, com o seu aspecto delicado, contrasta com a presença maciça da catedral. Faltavam cerca de 260km para Santiago.



Deixamos a cidade rumo à planície que a circunda e poucos quilómetros mais à frente, na ermida do Ecce Homo, inauguramos a credencial do peregrino com o primeiro carimbo. Por esta altura já estava a ficar preocupada: ainda só tínhamos percorrido cerca de cinco quilómetros e já tinha as mãos dormentes e inchadas. Perguntava a mim mesma se iria conseguir chegar ao fim da etapa, que tinha acabado de começar, e tentava recordar-me se das outras vezes tal também me tinha sucedido. São as dúvidas de qualquer peregrino a Santiago. Chegamos? Não chegamos? Felizmente foi preocupação de pouca dura. Meti as mãos debaixo da água fresca e corrente de uma fonte junto à capela e senti-me recompor.

Avançamos pelo trilho, mas o calor de Agosto começava a tornar-se cada vez mais abrasador e era agravado pelo facto de caminharmos por uma pista de terra batida, plana, desprovida de sombra e que parecia nunca mais ter fim. Em suma, uma típica planície castelhana. No meio daquela aridez, de tempos a tempos, surgia um pequeno “pueblo” onde abastecíamos o cantil que, rapidamente, se voltava a esvaziar.



O almoço, quase a meio da tarde, fez-se no Rabanal do Caminho. A pequena, mas pitoresca aldeia, consiste, quase exclusivamente, na rua principal, ao longo da qual foram nascendo pensões, albergues e restaurantes. Sentamo-nos numa esplanada, comemos as sandes, bebemos um Aquarius (que se viria a tornar num dos companheiros inseparáveis ao longo dos vários dias de caminhada) e degustamos um gelado.

Depois do descanso seguimos em direcção a Foncebadón, o ponto final do primeiro dia de jornada. Os últimos quilómetros foram feitos em subida, com muito calor e pouca água o que tornou a caminhada bastante penosa. Finalmente, deparou-se perante nós a silhueta de Foncebadón, mas o dia ainda não tinha terminado. Não tínhamos visto muitos peregrinos ao longo do caminho, mas parecia que meio mundo se tinha encontrado naquele pequeno povoado no meio do nada, a quase 1500m de altitude. Arranjar lugar para dormir foi um filme!  Tudo estava cheio, o próximo albergue ficava a cerca de 7km e já estava a escurecer.

Fomos até à capela e pedimos encarecidamente ao hospitaleiro responsável pelo albergue paroquial que nos deixasse dormir no alpendre do templo. A resposta foi favorável, mas como já não havia colchões disponíveis teríamos de dormir no chão. Ainda assim, disse-nos que teríamos direito a um banho quente e a fazer a refeição em conjunto com outros peregrinos.

Foi nesta aldeia que melhor se revelou o espírito intrínseco ao Caminho de Santiago. Estávamos já instalados no alpendre da capela, com os sacos cama estendidos no chão, quando um casal de italianos, vindos de Pavia, nos veio oferecer um dos seus colchões. Outros peregrinos reorganizaram o seu espaço no albergue que estava “à pinha” e, por fim, acabamos por ficar acomodados no interior do mesmo juntamente com os demais caminhantes.

Antes do jantar, que foi feito em conjunto, houve um encontro de peregrinos em que se partilharam experiências relativas ao caminho. Entre eles estava outro italiano, um verdadeiro poliglota, que traduziu nas mais variadas línguas, os testemunhos dos diversos participantes. Quanto ao jantar, feito por quem ficou acomodado no albergue paroquial, soube-me pela vida. Nunca um arroz de tomate com salsichas me pareceu tão bom, uma verdadeira iguaria. No fim da refeição, novamente em conjunto, arrumamos a cozinha improvisada para os períodos de maior enchente e lavamos a louça. 

O albergue de Foncebadón e o seu hospitaleiro vão ficar na minha lembrança porque traduziram o verdadeiro espírito de partilha e hospitalidade que caracterizam o Caminho de Santiago. Acomodada no colchão cedido pelo casal italiano, coloquei os tampões da Renfe nos ouvidos e adormeci. 

Santiago, aí vou eu...outra vez (continuação)

Preparada para a aventura, encontrei-me com o meu parceiro de caminhada e fomos almoçar num típico tasco portuense junto à igreja de S. José das Taipas, gerido por uma simpática “tripeira” que, admirada, nos pediu para rezar por ela e pelo marido em Santiago.

Depois do repasto dirigimo-nos ao local de embarque mas, primeiro susto da viagem: a “camineta” da Autna atrasou-se, o que poderia comprometer a chegada a tempo e horas a Vigo onde iríamos apanhar o comboio de longo curso até Astorga, o ponto de partida da nossa rota jacobeia de 2013.

Assim que chegou o “bus”, enfiamos as nossas mochilas e cajados (adornados com cabaças e vieiras) na bagageira perante o olhar meio desconfiado dos outros passageiros. Novo atraso no Aeroporto Francisco Sá Carneiro… O tempo parecia-nos cada vez mais apertado e já tentávamos encontrar alternativas para chegar ao local de destino. Apesar de tudo conseguimos chegar a Vigo mesmo a tempo de apanhar o tão desejado transporte. Foi por uma questão de minutos, mas tudo correu pelo melhor.

A viagem até Astorga foi longa, quase 6h, embora feita com grande comodidade. Os comboios da Renfe são um “must”! Ofereceram-nos uma pequena mochila, uns phones, uns tampões para os ouvidos (que se vieram a revelar indispensáveis em diversos albergues ao longo do caminho) e uma bolsa de mão. Era quase meia-noite quando chegamos, o que dificultou a procura de um local para passar a noite.

Os albergues de peregrinos estavam cheios e as festas da cidade lotaram todos os hotéis da povoação. Duas senhoras idosas correram connosco grande parte da zona antiga da cidade em busca de local para pernoitar mas, pura e simplesmente, não havia lugar. Por esta altura já o vão da escada de um bloco de apartamentos parecia a suite de um hotel cinco estrelas. Finalmente e quando a resignação já se estava a instalar deparamo-nos, como por milagre, com a Casa Sacerdotal. Era tardíssimo! Acordamos o padre que, amavelmente, nos recebeu. Já no quarto, caí na cama e dormi profundamente. Estava morta de cansaço, mas estava em Astorga. Daí a poucas horas ia começar o Caminho Francês de Santiago. Isso era o mais importante.